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Foto do escritorVanessa Aparecida De Oliveira

A criança eterna


Autora: Maria Homem

Fonte: Revista Facom/FAAP, 2009


“O despertar como um processo gradual que se impõe na vida do indivíduo como na das gerações. O sono é seu estágio primário. A experiência de juventude de uma geração tem muito em comum com a experiência do sonho”.

Walter Benjamin Passagens, K1,1

A expressão latina puer aeternus remete à posição daquele que busca permanecer eternamente como criança ou jovem, recusando-se a aceitar o desenrolar inevitável da vida que, se levada às suas últimas consequências, se encaminharia na direção de uma vivência relativamente autônoma até seu fechamento deslocado para a posição do senex, o velho. O processo de maturação envolveria lidar com o afastamento dos cuidados e eventuais benesses da infância, mantendo porém sua criatividade e impulso realizador ao longo da idade adulta responsável, ao mesmo tempo que formando as bases para se alcançar um estágio de sabedoria e desprendimento ao se aproximar do fim da existência.

Esse desenho do ciclo de maturação e, mais, o entrelaçamento dialético entre estados de puer e senex, forneceriam as balizas para uma vida de alto grau de densidade psíquica, como vários buscaram descrever, dos alquimistas a Jung.

O artigo busca refletir sobre esse esquema assim como sobre a prevalência do lugar do puer na atualidade. O texto fará isso em três momentos, abordando a figura da infância, da juventude e por final a da orfandade, colocando-as em relação ao declínio da lógica patriarcal e espraiamento do paradigma moderno. O objetivo é fornecer elementos para se formular os impasses que se apresentam nestes nossos tempos de passagem (como veremos, para algo que não se constitui).

A forma-criança e o imaginário do paraíso

Puer aeternus é uma figura ela própria quase eterna. Uma de suas primeiras alusões aparece nas Metamorfoses de Ovídio, ao se referir a um deus-criança, fonte de todo impulso e graça. Uma outra linhagem dessa representação é a do deus Dionísio, com suas características ligadas ao prazer, à extroversão e ao dinamismo.

O que se coloca sobre a representação da criança, tão fundamental em tantas culturas e há tanto tempo? Uma coisa é inegável: o ser criança congrega em si inúmeras possibilidades, sendo toda ela potência. Não é à toa que essa continua a ser uma das imagens que mais comovem o interior do humano para sempre saudosista de um manancial inesgotável de potencialidades que, a cada ano que passa, além de mais velhas, se revelam mais estreitadas. A criança carrega consigo a esperança pelo próprio fato de que podemos dela esperar quase tudo o que nossa ilusão desejar. O fascínio pelo ser do infante é antigo, e há muito adorado. A cada vez que uma criança nasce, diz o vulgo, a esperança de que os conflitos e problemas insolúveis do mundo possam se ajustar vem revigorada, como uma onda insensata trazida pela força da idéia mestra  de que tudo agora pode ser diferente.

Uma outra pressuposição associada à representação que os adultos constroem do universo infantil é de que a vida de criança é um maravilhamento esvoaçante quase contínuo, período de graça, leveza e descoberta do mundo. Descoberta essa que se faria pelo brincar – na via da construtiva fantasia. E, portanto, ponto importante, um pouco mais livre do “peso da realidade” que – como a expressão revela – implicaria carregar elementos áridos de se entrar em contato.

Ou seja, na infinidade da rede de polaridades que formam nosso rico universo simbólico, achamos por bem contrapor a leve alegria da criança à dura e monótona realidade. Ou seja, a doce fantasia infantil é ambrosia para os olhos e ouvidos dos humanos adultos e serve para nos proteger, ao menos por um breve tempo, da dura rotina e consciência daqueles que têm de enfrentar todos os dias as entediantes máquinas e as mais ainda entediantes pessoas com as quais se convive. Dessa maneira, sabemos, o lugar da vivência infantil pode resvalar para o de um paraíso, aquele que justamente nos damos conta quando já o perdemos, na consciência da idade adulta e lamentadora daquilo que passou e que foi inelutavelmente perdido.

E aqui, certamente, valem as muitas e brilhantes páginas de Proust  Em busca do tempo perdido ou os singelos e sintéticos versos de Ataulfo em  Meus tempos de criança:

Eu daria tudo que eu tivesse Pra voltar aos dias de criança Eu não sei pra que a gente cresce Se não sai da gente essa lembrança … Eu igual a toda meninada Quanta travessura que eu fazia Jogo de botões sobre a calçada Eu era feliz e não sabia

O tempo mágico nostalgicamente perdido. Concepção, no entanto, além de ilusória, perigosa.

Para demonstrar a falácia dessa construção, bastaria uma breve visita aos consultórios de psicanalistas que atendem crianças ou instituições que trabalham sistematicamente com elas. O que vemos aí? A infância não se garante como um locus de alegria e resolução por si só. Não, ser criança, como ser qualquer coisa, é sofrimento também, é crise também, é não-saber também, é pergunta e angústia também. Qualquer momento da existência de um ser talvez seja estruturalmente semelhante, nesse sentido: a cada pedaço de tempo sua dor e sua delícia, seus dramas e descobertas, o embate com o espelho na aprendizagem de cada centímetro do caminho[1].

Mas, claro que sabemos disso. Em algum nível, com maior ou menor grau de consciência, sabemos bem que não se pode paraísar (nem infernizar) nenhum tempo nem nenhum espaço do globo, pois esse estratagema se revela frágil e, em última instância, falso. Assim, revela-se recorrente a “mania de criancice” do adulto para o qual a realidade passa a ser estigmatizada como entediante e não desejada, enquanto a fantasia ou a virtualidade constituiriam o melhor dos mundos para se estar, no não-aqui e no não-agora. Aliás, essa parece ser uma posição maníaca (ao mesmo tempo que melancólica) do adulto: lidar com a perda situando logo antes da iminência dela algum espetáculo maravilhoso, paradisíaco, fundante e simultaneamente desejante, e talvez por isso mesmo inalcançável.

De toda forma, as culturas humanas, há muito tempo, jamais deixaram de ofertar a si mitos de origem. Um topos narrativo central desses mitos aborda a figura de um paraíso que houve em algum momento anterior e, sim, foi perdido por conta da besteira insignificante de algum humano mais afoito ou guloso. Ou uma humana, como no clássico caso de uma fêmea e sua maçã. Claro, por vezes, o paraíso é também longínquo, projetado não no passado perdido mas num futuro distante e vago. Sobrevivendo ao apocalipse, e tendo passado na grande prova final – onde o ajuízamento se fará –, alcançarás o paraíso. Ou seja, parece que uma ‘cota de paraíso’ tem sido necessária às formações simbólicas humanas há alguns milênios. No espaço de uma vida individual, repetimos esse mecanismo ao projetar o paraíso sobre o início, a infância, e, no decorrer da existência, na idéia de que dias melhores virão – afinal, é em nome deles que me submeto às situações que por vezes não são as mais instigantes do mundo.

A forma de se estruturar os preceitos de valor e consequente comportamento ao qual damos o nome de cultura (ou ideologia?), atualmente, nos propõe reiteradamente a idéia de que esse período de vida de fato, é muito bom, e, aliás, é quase tudo o que almejo: o conforto e a alegria feliz da era da inocência inconsciente, cuidada e irresponsável. E também nos reitera a outra idéia, a primeira alinhada aqui, de que o universo do infante é potencialidade múltipla, beirando a maravilha libertadora que é o infinito. Afinal, nada mais difícil, para o sujeito moderno que reiteramos a cada vez até os dias de hoje, do que abrir mão de que somos nós aqueles que tudo poderemos inventar, criar, modelar, fazer. Abaixo o tédio de nossas vidas, pois que minha vida pode vir a ser outra daqui a um segundo, no espaço de um clic.

Mas aqui talvez haja um problema. Um problema e um paradoxo. Pois, na medida em que adentramos mais claramente um determinado conjunto de práticas para consumo e oferenda, o pequeno sujeito criança, convidado a servir de modelo para adultos um pouco em crise, se vê não a altura de tão hercúela tarefa. E os próprios agentes do discurso o percebem, mesmo que sob os disfarces da valoração da infância.

E um novo deslocamento surge, agora cada vez mais entranhado nas formas lógicas e históricas com que nossas organizações sociais nos convidam a significar e realizar a vida. Sim, queremos a alegria, a liberdade e o prazer supostos na infância. Mas como fazer esse ser poder exercer o seu ser, poder desejar e consumir os objetos de seus desejos, ou sonhos? A criança, a priori, tem poucos recursos no que se refere a uma atividade encarnada no real, posto que, além de prioritariamente perita no domínio da fantasia, é dependente – literalmente – da alteridade que lhe provê o acesso aos objetos do real. Como resolver o impasse? Simples! Adolescentize-a.

A juventude eterna

De uma forma ultra-sintética, poderíamos então afirmar que na atualidade a adolescentização busca operar a intersecção de dois grandes campos maiores de nossa cultura: a infância e o consumo. O processo passa, inevitavelmente, a operar em diferentes áreas do vivido. O pequeno sujeito infantil é convidado a participar de um simulacro e miniaturização da práxis adulta. Destaquemos algumas situações-modelo. É entregue a ele um pequeno carrinho de supermercado para fazer suas compras (embora, obviamente, os pais paguem – o que revela sua posição de pequeno consumidor dependente do grande consumidor). A criança festeja em ou frequenta um salão de beleza para fazer unhas, cabelo e corpo, pequenos modelos obedientes a naturalizar a valorização de um dos grandes objetos narcísicos do contemporâneo, a imagem do corpo próprio. Também realizará compras nas mais diversas lojas a fim de construir seu estilo, “a la adulto”. Enquanto todo esse aparato lógico se sustentar, sem dúvida permanecerão inúteis libelos de especialistas contra algumas práticas, como ortopedistas discutindo o uso de salto por meninas de 5 anos ou sociólogos criticando a sistemática de “schedules” lotados para os mini-competidores em sua formação técnica aos 7 anos – de aulas de línguas à máquinas, passando pelo corpo atlético e vencedor.

A criança poderá, assim, fantasiar seu universo paralelo destacado da realidade ao mesmo tempo que passará a possuir instrumentos mínimos para dela participar, no veio específico de retirar do real os objetos necessários para a realização dos seus desejos, ainda e prioritariamente, infantis. Infantis, em última instância, no sentido de ser basicamente um desejo de apropriação do objeto todo feito para encaixar em sua figuração fantasística de prazer.

Infantis, também, no sentido de uma relação primordial com o lugar estrutural materno, aquele que – imaginariamente – seria pura fonte de leite e mel, colo doce que magnetiza e seduz os seres que saíram de suas entranhas. A representação do materno é das mais complexas do sistema simbólico, uma vez que parte de uma polarização entre cuidado e conforto, de um lado, e, de outro, poder e sedução nas raias do perigo (encarnadas tanto na clássica mãe devoradora de certas correntes psicanalíticas, como em salomés e derivadas figuras arquetípicas que esboçam fêmeas quase demoníacas). Aqui desenha-se o conflito do sujeito: ou se entrega à gosma quente do seio da mãe-terra-fêmea acolhedora como puer e se infantiliza para sempre; ou, como herói, vence o visgo com as armas pontiagudas e cortantes, libertando-se de cordões umbilicais e demais metáforas de separação do prazer alienante. Parece que, no momento atual de nossas concepções sobre o viver, a primeira alternativa parece ser a mais sedutora.

O medo e o desejo caminham juntos, pois se teme o que mais se almeja: quase o ímã inescapável da pulsão mortífera[2] que gostaria de me deixar para sempre nos braços do grande outro que foi o primeiro receptor de meu ser, afagador de meu corpo e modelador da minha alma. O sujeito parece levado a desejar e trabalhar pela manutenção desse prazer desenhado e redesenhado à exaustão nas filigranas fetichizadas de uma sociedade no auge dessa produção imagética.

Nessa direção, felicidade e conforto não têm como não operarem como dois grandes vetores do contemporâneo, de tal forma que se naturalizam a uma alta velocidade. Não há porque não contratar toda a gama de serviços para deixar minha casa e meu corpo mais adaptados ao meio, nessa rede de conforto que passo a pendurar em áreas básicas da vida. Essa lógica se estende também à maturidade que, então, passa a desejar permanecer na animação de certa forma alegre do entretenimento e da juventude, ambos desejados eternos.

Aí as mídias são literalmente o meio que carrega essas representações onde o indivíduo está bem e cercado pelo  bem – onde o bem significa, aqui, o efeito bem-sucedido da ação e que leva, dessa maneira, ao telos do ato como sucesso do acúmulo de objetos, pessoas e serviços de manutenção do estatuto de prazer e diversão. Não há como a lógica de fetichização das imagens não incidir sobre esse campo semântico, produzindo e mantendo imperativos de gozo, em qualquer que seja a direção apontada, em suas traduções de mais prazer, mais entretenimento, mais intensidade, mais jovialidade, mais aproveitamento da velha equação custo-benefício. Chegando, a partir daí, inclusive a mais velocidade e, milagre?, mais tempo (essa,  a real e preciosa mercadoria da nossa era).

Ou seja, a idéia é alterar levemente a conformação da maturação mental e partir para algumas das realizações propostas, principalmente aquelas, fundamentais, ligadas ao consumo. Eis-nos então no universo da juventude. Leia-se: jovem no sentido conceitual do termo, pois essa nova adolescência pode, hoje em dia, estender-se em um manto de penélope infinito e situar-se, talvez, entre 2 e 52 anos cronológicos. Observa-se, assim, um belo processo de adolescentização da posição oferecida à subjetividade que, em poucas palavras, tudo gostaria de realizar, sem se colocar na posição de escolha consequente e muito menos de responsabilidade por seus fazeres. Nesse sentido, quem sabe, possamos compreender algo do impulso de eliminação dos pais, se eventualmente eles vierem a se revelar como obstáculos para a fruição desse imperativo gozoso.

Enfim, a hipervalorização da juventude é moeda corrente, tanto na via das subjetividades identificadas a determinados modelos, como na da prática de detreminados comportamentos valorados e, ainda, na de uma estética da materialidade do corpo. O corpo jovem e saudável numa mente jovem e saudável, todos a se divertir e consumir, felizes e sem limites. O trabalho é monótono, a realidade é peso. Nada mais natural, óbvio e repetidamente afirmado. Eis o puer aeternus milenar recolocado nas prateleiras: a juventude eterna se ampliando em inúmeras dimensões, praticamente fechando o espectro concreto-abstrato.

O que parece ecoar em nossos ouvidos e mente como pano de fundo é uma pergunta sobre a causa e a função de tal deslocamento. Quando foi que a vida adulta teve seu crédito deslocado? Por que não está mais em lugar de honra no panteão dos ideais da cultura?

Aqui não temos como não nos remeter mais uma vez à grande transformação de paradigmas operada pela modernidade. Um aspecto central de sua lenta e não surda revolução incidiu não somente na colocação em cena da confiança numa racionalidade subjetivada em dialética com a formação crescente do campo legitimado da individualidade, mas sobre a alteração da equalização de poder entre novos e velhos. Como o preciso nome desse denso processo já aponta, estamos em um embate entre duas maneiras distintas de pensar e se colocar frente ao outro e frente a si mesmo. Os modernos se contrapõem aos antigos. Aqui surge a semente de todo o arvoredo: o novo é melhor. Sem discussão, sem nem pensamento: o mais novo é o emblema que decora a embalagem de quase tudo, de mulheres a sucos artificiais.

Estamos falando, aqui, de fato, da crise e muito provavelmente do inexorável declínio da lógica patriarcal. Em última instância, a forma de relação entre os seres se ancorava numa polarização entre diferentes: o maior e o menor, o mais poderoso e o submetido, enfim, o pater e o filho.

Hoje, e isso significa, há já alguns séculos, a própria instauração do paradigma moderno e sua base de igualitária distribuição da luz da razão, não teve como não implicar a crise desse modelo de ajustamento das relações de poder entre os seres. Queda, declínio, fratura, falência… de qualquer forma, algo vai mal. Simplesmente porque a função da autoridade não mais casa sem conflitos com o lugar do pater, com o Um que exerce a autoridade, aquele que adquire esse estatuto através de uma complexa rede social de significação, seja por tempo de nascimento (o que nasceu antes, o mais velho, o patriarca) ou espaço de nascimento (o que nasceu no seio da corrente azul de valoração passa a ser uma figura mais desencantada no contemporâneo, o rei, o senhor). E, nessa leva de decadência, até deus morre. Claro, deus que é o pai todo-poderoso por excelência.

Deus morre; mas, como qualquer recalcado, ressurge na teimosia e violência do retorno daquilo que não quer aceitar a perda de que há no mundo pelo menos um lugar que garanta a sabedoria e a certeza. Relativismo, individualismo, auto-consciência…, não. O filho não o deseja. Que a alteridade investida de poder – o outro fora e acima do eu – continue a me balizar porque sem isso estarei perdido e descontente, com a plena convicção de que o mundo está na era da decadência e estamos de fato mergulhados até o pescoço no apocalipse. Não, isso não. Dê-me meus deuses de volta, e alguma consistência, pelo amor de deus. Aí, inclusive, a brecha para as mais diversas reconstruções totalitaristas e forçadas da realidade.

Claro que esses movimentos regurgitarão e virão como ondas, por vezes com alguma coação, ao longo desta viagem radicalmente moderna que é a nossa. Mas creio que fracassarão como senda discursiva estrutural a longo prazo. Há órfãos que se irritam, sofrem e berram por um pai, alguns chegam a matar em nome de um, dando sua vida no esforço de sua re-consistência potencializada. Mas aquele pai do todo-poder, do super-poder, do desmedido-poder, esse está fadado a não existir mais.

Os órfãos e o despertar

O que há então? Talvez um indivíduo moderno, factível e somente-humano (para retomar, e de certa forma provocar, o além- ou super-homem nietzscheano[3]). Um patriarca que chora, erra e até castiga, quase sempre com alguma dúvida e muita culpa. Lugar que, em muitos lares, de todas as rendas, é de fato ocupado por uma matriarca. Na verdade, hoje talvez estas distinções estejam se tornando cada vez mais estritamente formas de nomear corpos, neste fervilhar metropolitano ocidental que passa a varrer todas as culturas do globo – via tele-visão, a visão a distância do dito novo e progressista modo do viver – objetificando a sexualidade como objeto-corpo ao mesmo tempo que dessexualizando o sujeito em ato, na indiferença do gênero que move o capital e o moderno.

Ou seja, estamos operando não mais no âmbito estrito do pátrio poder, mas no do poder do consumidor. O consumidor agora constituirá vínculo de trabalho mais ou menos estável no mercado sempre mutante, trabalho que lhe permitirá o consumo de que se arvora o direito; e constituirá família, quase sempre mutante também, reconfigurada sucessivamente, em que ambos os cônjuges, de sexualidades mais ou menos variadas, quase sempre dividem a tarefa provedora e educadora da prole.

A partir daí, instaura-se um efeito inédito: a ausência simbólica da função patriarcal clássica abre a questão sobre uma rede de identificações perdidas: os órfãos da lógica patriarcal, agora elevados à categoria de indivíduos, devem inventar um destino e buscar inscrevê-lo no caldeirão intrincado da cultura cada vez mais complexa. E detalhe, toda ela submetida ao comprar e vender do mercado que gerencia também imagens desses indivíduos e seus valores matematizados na bolsa de citações midiáticas. Em suma, tudo ficou muito mais difícil. Livre, porém complicado. Nesta brecha se inscreve a recusa do despertar para mais radical para a vida adulta, embrenhada então, necessariamente, no individualismo narcísico e exigente que convida o sujeito a carregar o peso de um “eu” de sucesso e da luta para alcançá-lo. Luta cruel, mesmo que vitoriosa; e eventualmente em outra ordem da mesma crueldade, se compreendida como fracassada – para focarmos nos dois extremos das categorias superegóicas que ajuízam o desempenho desse fragilizado eu.

Assim sendo, não parece tão díspar o impulso, cada vez mais facilmente decifrável nos movimentos da mídia ou nos discursos de nossos consultórios de um número crescente de sujeitos em crise diante de uma existência propriamente adulta, permanecentes na posição de puer aeternus, e tudo fazendo para daí não sair, alimentando assim a era do entrenimento blindante, mantendo-se nas narrativas estéreis de infindáveis séries audiovisuais (cinematográficas, televisivas, net ou mobile, pouco importa a superfície) ou na ironicamente chamada ‘realidade aumentada’ e virtual dos games (que, não à toa, consistem o domínio que mais cresce em todas as mídias). Preguiça? Tédio? Depressão? Nomes moralistas ou psicologizantes diante da ausência de trilha simbólica e inércia fundamental das forças mortíferas e repetitivas que atuam na subjetividade contemporânea que parece, dessa maneira, ter perdido a fulguração do ideal em última instância paterno que nortearia suas escolhas e atos. Era de orfandade.

Ajunte-se a isso uma crítica que começa a se delinear tanto em face desse contexto como diante dos lugares, tidos como inconsistentes, propostos às subjetividades em processo de formação. Essa crítica opera, portanto, tanto através da negação da realidade como da recusa do lugar de um indivíduo “adulto, maduro e produtivo”. E não somente no campo da aceitação de uma práxis incorporada ao universo do trabalho e consumo, mas passando, ainda, pelo imperativo hedonista e seus corolários midiáticos.

Esta conjuntura traz outras implicações. Tais vetores – o declínio da função patriarcal e a instauração do paradigma moderno – penetram igualmente na carne e atingem as subjetividades também em seus processos de sexualização. O “ser homem” adulto e maduro expõe um continente esvaziado de conteúdos identitários cambiantes e paradoxais, revelando o caótico de uma crise de reconhecimento. Da mesma forma, pluralizam-se os apoios especulares que sustentariam um necessariamente outro lugar para o feminino. A mulher, no entanto, talvez esteja se escorando no masaico das imagens de uma “nova mulher”, pois acaba por se fazer ancorar nos preceitos de movimentos que busquem reforçar essas identificações, como as correntes feministas e, atualmente, neofeministas. E isto por mais problemáticas que sejam suas linhagens – forjando uma identidade para a mulher contraposta ao conceito substancializado justamente de seu oposto patriarcal, e operando com a fêmea como entidade, como bem aponta Judith Butler[4]. De qualquer maneira, a tríade sexualidade, maternidade e trabalho (no espaço público) buscam configurar o atualmente mais amplo desenho do lugar da mulher. Como a própria lógica de produção que gira em torno do mercantil e do capital é unissex, e deve sê-lo para bem funcionar, esse lugar que seria do masculino é ocupado tanto por homens como por mulheres, as mais novas e ativas integrantes do mercado de trabalho, desde mais de um século, e notadamente há meio, no pós-guerra fatídico e transformador das experiências de uma pós-modernidade ainda em digestão que nos impulsiona a todos ao trabalho, ao mercado, ao consumo, independentemente de gênero.

Se este campo do feminino no embate pós-patriarcal pode, sob alguma medida, se mascarar como ativo – pois que é luta e bandeira, nomeada e articulada –, a configuração do masculino coloca-se como prioritariamente reativa, marcada pela falência de seu antigo ideário bem denominado machista que, no entanto, e por isso mesmo, não deixa de buscar se exercer, muitas vezes, pela dominação. Sabemos, porém, que os pólos do embate subjetivo operam em estrutura dialética e o par complementar da passividade, que estava subjugado, tende a emergir no aparato consciente – inconsciente.

Assim, o macho moderno, buscando delinear o novo papel do masculino, tende a oscilar entre a afirmação mais decidida e a crise mais paralizante: caminha entre identificações aos ideais de sucesso e a suspensão melancólica da ação. Dessa forma, reitera-se a crença no universo da competição capitalista e na ilusão de um “eu” vencedor: espécie de self made man, macho-alfa, provedor ou conquistador, e demais figuras identificáveis das idealizações individualistas dos dizeres contemporâneos. Elas apoiam-se na ideia do eu moderno racional e realizador, o que traz problemas quando se evidencia que todo o jogo produtivo é obrigatoriamente interligado – global – e o narcisismo é o mito de base que alimenta a idéia de um eu a ser imaginariamente potencializado.

O avesso dessa tessitura só pode se dar por uma atividade tateante e incerta de si, que passa a buscar a garantia e a aprovação no olhar do outro, por vezes refugiando-se na inércia desejante de seguir os modelos enfeitiçados propostos pelos discursos correntes, ator transparente que segura os instrumentos operados por outros, e muitas vezes preso na sedução mortífera da fantasia infantil de um período de gozo, infinito e hipervalorizado, e que tudo faz para nele permanecer. E, quando não alcançado, remete o sujeito a uma contra-aura de frustração, tristeza e inação. Nesse sentido, ambas as estratégias acabam por dar na viela de um puer eternizado que cai na armadilha de nada mais fazer para poder permanecer na chupeta do receber ou do não fazer, e em paz. No entanto, o sujeito não percebe o quanto de atividade há em buscar se manter no lugar da recepção ou da inatividade, na luta para não despertar de um imaginário idílio feliz. Não ausência de um modelo forte e seguro, a força em buscar alcançá-lo se desloca para a negação de sua própria ausência.

Assim, ao embaralhamento dos pares topológicos do pater e seus seguidores, junta-se o descompasso entre masculino e feminino, ambos apontando na direção de uma cultura puer  adolescentizada e que sufoca, consequentemente, o menor sinal de velhice, desgaste ou cansaço. A lei é dos jovens, fortes e energéticos. Órfãos ao mesmo tempo que recolocando ideais quase sempre inatingíveise sem sentido em uma série infinita de imagens brilhantes e falsas.

Em dado momento, Nietzsche pergunta: ” ‘Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito?’ – Isto se tornou para mim a verdadeira medida do valor[5]“. Deparamo-nos com nossa própria falta de instrumentos para lidar com essa outra verdade – pois que a perda de sentido também é sintomática da nostalgia de um paraíso perdido. Enfim, crescer e se multiplicar parece não ser tão simples. A pergunta central incide sobre como operar com determinados traços do sujeito moderno e que ousa sair da era puer: a liberdade laica, de certa forma ainda algo assustadora; a responsabilidade daquele que, como a raiz aponta, responde por si, tanto como sujeito individual quanto como sujeito coletivo, não mais podendo se ancorar no anonimato irresponsável da massa; a plasticidade, não somente restrita à infância mas atributo do vivo, embora em quantidades decrescentes ao longo do tempo; a performance do ato ancorado na autoria radical e solitária, a da autoridade a partir de si mesmo, porém em dialética e formalização a partir da alteridade e suas instituições.

Difícil maturar. Uma dificuldade tanto desmamar quanto perder o modelo do herói deificado. Porém, a consciência é irreversível. Atarefa é seguir por si, suas próprias perna e responsabilidade, sem nem o fantasma da perda do maravilhoso nem a conformação cínica com a dureza de uma vida adulta sub-fantasiada, ou hiper-desencantada – e no também difícil debate com o outro, seu imaginário e seu poder. Para o somente-humano parece, no entanto, não haver saída muito diferente.





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